CULTURAL

Anavitória

Lançado de surpresa na virada de 2020 para 2021, “COR” é o terceiro álbum autoral  de Anavitória, duo surgido no cenário pop brasileiro em 2015 e que em menos de um ano se  tornou referência fundamental no segmento. E o salto é inacreditável. Em 14 faixas, ficam  transparentes os inúmeros amadurecimentos - individuais e como dupla - de Ana Caetano e  Vitória Falcão, da composição à interpretação. O álbum eleva as meninas a novo patamar  artístico e tem pré-requisitos para extrapolar o público jovem que as acompanhou até aqui.  Apoiando essa guinada, “COR” tem como convidados especiais Rita Lee e Lenine, artistas  que souberam tão bem fazer essa síntese entre o pop e a música popular brasileira.  

“COR” foi produzido e gravado em meio à pandemia, enquanto Ana e Vitória estavam  recolhidas em uma casa em Itaipava, região serrana do Rio. Àquela altura, Ana tinha boa  parte do repertório já escrito. Ficava ouvindo o material ainda embrionário em loop, tentando  imaginar os caminhos que poderia dar a ele. Semanas depois, as duas artistas sentiram que  chegava a hora de começar a transformar as ideias acumuladas em um álbum.  

Chamaram logo Tó Brandileone (da banda 5 a Seco) para passar um período morando  com elas na serra e participar da pré-produção. Ele divide com Ana Caetano os créditos de  produção musical em “COR”. A relação das Anavitória - como os portugueses  carinhosamente as batizaram - com o produtor existe desde 2019, quando fizeram o single  “Perdoa”. E se aprofundou meses depois, durante a gravação do álbum “N”, álbum dedicado  ao repertório de Nando Reis. Naquele projeto, definiu-se o método de trabalho de Ana e Tó  na produção musical: ela traz referências timbrísticas, indica a dramaturgia dos arranjos,  aponta aonde quer chegar; ele traduz tecnicamente esses desejos e complementa as ideias  com sua experiência em estúdio. 

E Ana já tinha muita coisa imaginada para “COR”. Desta vez, o leque de referências  se apresentou ainda mais aberto, indo da musicalidade gospel de Hillsong (muito presente  na balada “Eu Sei Quem É Você”) até a batida do violão brasileiro de Djavan (que ecoa na  faixa “Te Amar É Massa Demais”). Algumas canções remetem ao começo do Anavitória  (“Explodir”), outras se desenvolvem sobre uma linguagem mais próxima à MPB (“Cigarra”,  “Lisboa”). Nomes emergentes do pop nacional, João Ferreira (“Tenta Acreditar”), Nina  Fernandes e Saulo (“Te Procuro”), Deco Martins (“Carvoeiro”) e Paulo Novaes (“Lisboa”)  surgem no álbum em parcerias com Ana Caetano. O próprio Tó Brandileone assina com ela  a amorosa “Selva”, que terminou de ser escrita no último dia de gravação. 

A experiência nos palcos - e foram muitos os que as Anavitória pisaram em quatro  anos de existência - determinou o peso de muitas canções, desde a composição até o tipo  de arranjo a embalá-las. Já no trabalho autoral anterior, o desejo era ter um show pulsante,  que funcionasse muito bem em situações em que o público assistisse de pé. Essa força segue  presente no novo trabalho e se mostra especialmente eficiente em músicas como “Terra” e  “Abril”, todas escritas por Ana sozinha, que começam suaves e logo ganham corpo. Mas  esses impulsos catárticos não ferem o espaço das delicadezas, como as que se ouvem em  “Ainda É Tempo”, arranjada com piano, baixo acústico e cordas. 

Faixa que abre o álbum, “Amarelo, Azul e Branco” faz uma homenagem ao Tocantins  e à região Norte em geral, “um lugar onde o céu molha o chão, céu e chão gruda no pé,  amarelo azul e branco” (a capa de “COR” também trata disso, imprimindo as cores da 

bandeira do estado na blusa de tricô que as duas vestem). Rita Lee quebra seu jejum  fonográfico nessa faixa, recitando texto de Simone de Beauvoir: “Ao meu passado, eu devo  o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha  cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não  sou escrava dele”. Outro ídolo de Ana e Vitória, Lenine foi chamado para fechar o disco e  divide os vocais de “Lisboa” com as duas. 

Por cruzar tantas referências estéticas, abraçar escolas e agregar gerações diferentes  no decorrer das faixas, “COR” é um álbum bem difícil de ser classificado - ao menos se  seguirmos os padrões do pop atual. Para que as Anavitória chegassem a esse resultado,  viveram duas etapas de gravação. Todas as ideias desenhadas previamente por Ana foram  desenvolvidas assim que Tó Brandileone chegou na casa da serra para a pré-produção - e  essa vivência durou cerca de 25 dias. Montaram um estúdio caseiro, com violões, guitarra e  teclado. E passaram a testar tudo o que já estava na cabeça de Ana. Mexeram nas  composições, ajustaram as letras, as formas, as melodias. Uma música por dia, gastando  todo o tempo que ela demandasse. Chegaram a passar um dia inteiro em apenas dois versos.  Estruturaram levadas de bateria, linhas de baixo e guitarra, sintetizadores, coros. Vitória  apurou como uma artesã cada interpretação, o que possibilitou que se arriscasse em regiões  mais agudas da voz com total segurança. Em “COR”, Vitória se confirma uma das maiores  intérpretes atuais da música brasileira - e não apenas do pop. 

Esse tempo expandido, longe dos “taxímetros” do mundo real, fez com que todos  chegassem ao estúdio para gravar o “valendo” com todas as ideias já fechadas. A banda  trabalhou a partir dessa concepção, com cada músico contribuindo com a própria visão em  cima do que já estava desenhado. O time de músicos contou com Conrado Goys nos violões  e guitarras (e a participação da portuguesa Maro em “Cigarra”, “Explodir” e “Lisboa”), Fábio  Sá nos baixos, Mari Jacintho nos teclados, Valmir Bessa nas baterias, Felipe Roseno nas  percussões, Maria Beraldo e Will Bone nos instrumentos de sopro. O próprio Tó Brandileone  se reveza entre violões, guitarras, ukuleles, sintetizadores e programações. 

“COR” é o primeiro álbum de Anavitória lançado fora de uma gravadora. As meninas  seguem por conta própria, sendo distribuídas pela INgrooves, empresa ligada à Universal  Music. Pela lógica do mercado, aliás, não seria uma grande ideia fazer um lançamento na  noite de Réveillon. Mas foi assim que as meninas decidiram que seria. E Felipe Simas,  empresário delas desde o início, uma espécie de quinto beatle das Anavitória, bancou a ideia  até o final, pois já havia detectado que o público das meninas funciona a longo prazo, ou seja,  degusta o álbum inteiro e aos poucos, sem a ansiedade dos lançamentos do mercadão.  Nisso, são muito parecidas desde sempre com os artistas de perfil adulto. 

Um conteúdo audiovisual foi criado para cada faixa e está disponível no canal do  Youtube das artistas. Esse formato foi chamado por elas de “visualizer”, algo entre uma  fotografia e clipe, e cria narrativas visuais para embalar as canções. 

É fascinante testemunhar, no decorrer da história, os caminhos do artista que cresce  diante dos olhos do público. No caso das Anavitória, o interesse em acompanhar essa  evolução fica ainda mais profunda. Como se sabe, o poder de influência das duas meninas  sobre toda a nova geração do pop do Brasil é um fato que só se renova, desde 2016. E se  “COR”, com suas inúmeras qualidades artísticas, é a nova carta que elas colocam no jogo,  podemos acreditar em uma vida melhor no futuro da música feita por aqui.


Duração: 90 minutos.
Classificação: Livre.